DEPOIS DA TEMPESTADE

O mais grave não era a irritação pelo atraso, mas a obrigação que o engarrafamento lhe dava de perder-se em seus pensamentos.

Uma sensação cruel de Ter negligenciado o ato de refletir. Pensar e sentir estavam mais lado a lado que pensar e raciocinar. Raciocinava quase 24 horas por dia.

Olhava ao seu redor e ria-se em ironia: som ligado, bancos de couro, ponteiro a 20 km/h, óculos escuros pendurados à direita, limpa vidros conferindo irritação ao som ambiente. Raciocinara tanto antes de comprar tudo aquilo...

Lembrou-se da noite em que brigou com a esposa por ela ter-se esquecido de abastecer antes de voltar pra casa; e com seu filho porque estava irritado por terem arranhado seu carro. Começava a perder o direito do seu trono móvel.

Uma buzina e uma reação agressiva.
- O que é, meu irmão!?!?!
Irmão... é assim mesmo, o sadismo faz parte do nosso dia-a-dia.

Tinha perdido a sensibilidade. Estava habituado a ter todas as rédeas da situação. Impulsivo, irracional de tanto raciocinar. Queriam apenas avisá-lo da porta aberta.

Bateu a porta. Incapaz até de fechar uma porta direito. Mudava de estação como quem nada quer ouvir e tudo quer escutar. Apertava botões perdidos como num ritual para que o celular tocasse. Inquieto. Pego de surpresa por desaprender como se pensa. Comprar três metros de dutos, quatro caixas de A4, ligar para a filial de São Bernardo...

Inútil.

Lembrou-se da infância molhada quando chovia, de que não era politicamente incorreto comer goiabas da fazenda do Seu Chico, de quando conheceu o sorriso de Rosa menina...

Como estará Rosa?

***

O telefone cansava de tocar e Rosa, enxugando as mãos, descia as escadas.
- Alô! Respondeu ofegante.
Respirou fundo para não agir como normalmente.
- Rosa?
- Oi.
Não. Inútil não. Chega de portas entreabertas para o mal entendido.
- É... não... Tô ligando só porque... É que na verdade fiquei com saudades...
Há anos o silêncio era sinônimo de constragimento, uma pista em mão dupla de inúteis vazios.

Silêncio. Suspiros. Sorrisos. Ninguém atrapalhando o tráfego.
- Ô Amor...!
- Vou trabalhar hoje não. Daqui a 40 minutos te pego aí em casa!

E riu-se, dessa vez sem ironia. Cantando uma canção à qual queria ouvir. Desligou o celular. Fez um retorno a 20km/h e travou as portas.

Portas fechadas e buzina de fora. Esquecera de olhar no retrovisor. Viu o motorista enfezado e pra ele um sorriso simples molhado de chuva.

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