CRUZADAS
De todas as cruzadas às quais estava submetido, preferia as palavras. Cada letra que se encaixava num quadrinho o ajudava a esquecer os enigmas da vida em fogo cruzado e coração em chamas. Como se, ao desvendar os mistérios no papel, seus problemas encontrassem respostas matemáticas para as trilhas da vida.
A prova real não mais funcionava desde que um passo em falso transformara em guerra cruzada a santa paz que tinha.
Acordar, trabalhar e dormir tinham funcionado por tanto tempo. Por que inventara de questionar a rotina e as sensações? Por que pensar demais quando o mundo só solicita ações mecânicas e sem voltas? Sabia merecer as angústias e as noites mal dormidas. Ademais, encontrar tais soluções exigia um esforço tamanho diante da veloz e ininterrupta função de cortar temperos.
A frase matinal do chef não lhe saía da cabeça: “você não corta mais cebolas como antigamente”. O que lhe cortava o peito insosso e a cabeça dorida, fora dito com um sorriso brutal do chefe. A frieza dos superiores para criticar à queima-roupa é capaz de cruzar a mente de um homem que silencia ao ouvir a verdade. Mas estas lágrimas vêm das cebolas...
Cortar temperos por tantas horas já é cansativo o bastante, portanto, deixaria eficiência e soluções para as lâminas. E como as admirava! As facas podem atender às exigências do mundo sem perder a autenticidade: acordam e cortam organizadamente; para retomar uma relação não têm medo de fitar o outro, mesmo que sangre; na hora do cansaço, por fim, adormecem de verdade, (não precisam assistir às estrelas que cruzam a madrugada e revelam as angústias dos homens que choram e cortam cebolas).
O metrô estanca. Percebe o erro mortal dos que vivem sem viver: “transformação” com oito letras é E-V-O-L-U-Ç-Ã-O e não D-E-S-G-R-A-Ç-A, como arriscara inconscientemente. Porque em outra direção, para encaixar no jogo cruzado e maldito, “o que fazer em momentos difíceis” seria E-S-C-O-L-H-E-R e não D-E-S-T-R-U-I-R, como tinha pensado. Afinal, sempre arruinara as possibilidades e continuara ali, na escolha imutável dos que já não escolhem...
Por fim entendeu, como que num encaixe perfeito: o que parecia destruição por um golpe brutal e um sorriso sarcástico, era manifestação de sorriso sincero e satisfação. Revelação do que já não é por fortuna. Sim, chefe, já não corto cebolas como antigamente... e a lágrima que rola no rosto, de evolução e escolha ardente, dissolve-lhe as angústias.
Às vezes a calmaria engana e nem é paz o que se sente... E quando ela finalmente vem, não é morna, indolor ou transparente. É espada que teima, água quente que arde, mil texturas a incomodar e despertar o que está inerte.
Após contemplar as estrelas, adormece de verdade, como as navalhas do seu dia-a-dia. Sabe que o hoje, ao nascer do sol, terá evoluído e será antigamente. E todos os dias, entre escolhas e palavras, entre olhos e sorrisos cruzados, poderá cortar cebolas com uma paz diferente.
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